DA JANELA DA PALHOÇA: 10/22/08

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Glossário do Dialeto Caipira

Cornélio Pires coletou palavras que pertencem ao dialeto do caipira aqui da nossa região, ou seja, região do rio Tietê e do Piracicaba. Para quem se interessar veja no site: http://www.widesoft.com.br/users/pcastro4/glosscp.htm

CONTOS BEIRA CHÃO

O ESTALAJADEIRO E O MENDIGO

— Ôôôôô de casa! dá-me pão em nome de Jesus! que aqui vai um que morre! à la macaco de mão na cumbuca. um ajutório em nome daquEle que morreu no lenho dos castigos e governa cada pó de poeira que anuvia os olhos. quanta penitência meu santo espinafre! quanta luta em nome da pimenta e do frango. quanto fogo cozinhando as tripas, quanto fel... tou mais pra carcaça do que pra gente, tou mais pra vulto do que pra vulgo. preso neste destino sendeiro sem poder esquecer o azedume das partes amorosas. dê acá uma lasca do teu corapão. morro feito bicho ou morro feito gente com estômago cheio e vela na mão? salve rainha, mãe de cuscuz. dá-me de comer ou vai ter de enterrar um esmolo nesse chão temperado de jardim. dá-me fôlego santo feijão!
— Mas que patuscada em roda de mi casa. quem é que grita o devocionário todo da culinária de dona canjiquinha?! mas que porfia de reza e fome?!
— Sou eu, sim senhor.
— Eu quem? ora seja!
— Seja eu um eu! só um pedincho que se apura pelo oco do mundo.
— Eu quem? seja inteiro homem de Deus!
— Viriato, as suas ordens.
— Ora, ora, Seu Viriato...
— Pois que orei.
— ... o rancho só abre logo mais de manhã
— De manhã já morri nas graças do bom Jesus.
— Como morreu? homem! Tu tás aí falando feito um vitrolão.
— Falo pra continuar perseguindo as imagens dos pepinos, dos quiabos, dos maxixes, dos tomates, das berinjelas, das tigelas cheias de...
— Ora, ora, Seu Viriato...
— Pois que orei.
— ... pra onde vai o senhor carregado de legumes assim desse jeito?
— Pois que cozinho somente alguns e o resto é que pretendo vender lá na vila.
— Pois fará um bom dinheiro.
— Disso faço certeza!
— Poderia até comprar minha estalagem, o que me diz o senhor?
— Digo que bote preço...
— Faiscada! pois custa mais do que essa imaginação parva que o senhor me apresenta, ô, seu Viriato. pode aumentar o tamanho das cestas que vão medir pesos tão somenos porque aqui há um que não crê em pouca fantasia. além do que esse tomate todo aí é pouco e já vai ele passado da boa hora.
— Estes que trago? O senhor é que não é de boa digestão! os tomates estão verdeavermelhados. vai mais dias até que se estraguem.
— Ora, ora, seu Viriato...
— Pois que orei.
— ... esse é irmão desse! é melhor comer logo essa quimera toda antes que se estrague. e deixe eu acabar meu sonho. afinal, já estava eu quase nos finaismentes com a comadre do compadre.
— Pois digo a vossa mercê que troco todo o meu jacá de ideação por um único grão de arroz, aqui na palma, entre os dedos.
— Isso é coisa das mais comuns entre os que não seguem a razão. por que não fincou residência? é mais leve que esse balaio de devaneios.
— Pau que nasce torto, morre torto, sim senhor.
— Pois é de novinho que se endireita o pepino. não tivestes pai? ó, seu Viriato.
— Nem sei do que é feito! a velha mãe disse aqui no sopé da orelha que esse tal calaboclo tomou um perrengue e queimou capoeira. deixou até a cachorrada lamuriando umas quatro luas.
— Homem sem pai não sabe onde vai, ô, seu Viriato. o senhor tás a saltar das brasas e a cair nas labaredas.
— Morro assim nesse inferno...
— Um abismo atrai o outro, já disseram!
— Como houvera de ser...
— Ora...
— Pois que orei.
— ... por que não fincas tronco nalgum lugar, como já disse? mulheres, filhos... isso tudo é coisa boa de se valer.
— Vale a vida, que eu sei!
— Ao menos deixaria semente.
— Por dentro é aridez pura, não lhe disse? sou seco.
— És manco do saco?
— De jeito maneira! o fio da conversa demudou? tou lhe dizendo que larguei uma paixão lá pelos vinte e se não for aquela, como não foi!, outra é que não anseio! tenho dito, redigo e não desdigo. pois se é fogo que me espera... que venha todo porque já ‘tou mesmo é pra carvão. e digo mais, enquanto entrar vento aqui neste peito pra encher meu respiro, o nome de Matilde sairá no suspiro. pois até hoje essas mãos em outra não tocaram, nem essa boca, que só tá faltando comer os beiços de tanto fome, em outra mulher nunca que encostou. sou homem de palavra, saiba vossa senhoria! porque...
— Calma, seu Viriato! tás a soltar fogo pelo narigote!
— Arrazoado sim senhor! minha mágoa tá logo aqui. debaixo dessa cabeleira mora um homem de juízo! não vai ser banha de leite que vai mudar o meu tino!
— Escute lá, seu Viriato, não é que canta mesmo o galo. já são horas de passar um café.
— Santo galo cantador! eu 'tava a ponto de ir sacudir o bicho no poleiro. se ele soubesse horas, veria que passei da de morrer.
— Ora...
— Pois que orei.
— ... vou acordar a patroa, sente-se aí no degrau do alpendre que ela lhe traz um naco de pão com manteiga e uma xícara de café. tás de viagem?
— Minha viagem é sem fim... dura até a roda dos dias se cansar.
— Mulher! ó, mulher! traga um café-completo aqui que há alguém que não chega ao meio-dia.
— Já vai! posso me vestir?, pelo menos?
— Cruz minha! que palidez é essa, seu Viriato? parece que morre!?
— Mas não é de fome, Jesus, Maria e José!
— Aqui está o café... Viriato!
— Ôôôô, mulher! que derrubas todo o desjejum do pedinte!
— Matilde! Santo Deus!
— Viriato! o que te aconteceu? que desamparo é esse?
— Nada Matilde, nada! nada. nada...
— Ôôôô, seu Viriato?! pois cadê a fome, onde vais homem de Deus?... patuscada... agora é de uma balbúrdia só socorrer quem precisa... é louco. tu conhecias o homem?, Matilde.
— É... é um pobre coitado. vem... vem tomar café, vem.

O CAÇADOR E SEU FILHO

— Pai, o que o senhor vê nas sombras?
— Nada, por quê?
— Não tem bicho?
— Qual bicho?
— Bicho, oras! onça, caninana, caipora...
— Tem nada!
— Mas a vó disse...
— Esqueça o que ela disse, moleque!
— Mas ela falou...
— Ocê quer aprender a caçar paca ou não?
— Quero muito!
— Então, cala o bico, Dindinho! Quem muito fala, pouco ouve. quer aprender?
— Quero demais!
— Então, ó... o silêncio é armamento, entendeu? tá bom assim?... vê? Isso assim... esse mato batido que começa aqui na roça de mandioca e vai na direção do corgo, são elas! Mas são esperta que ocê nem imagina. Faça um arrulhinho só pra ocê ver... elas encafuam e passam fome na toca mas não saem mais a noite toda. é bicho de opinião! Já varei noites sentado, esperando e nada. sabe por quê?
— Não.
— Porque fiz um banzezinho de nada quando farejei a trilha delas. uma lascadinha de galho bastou pra silenciar o mato por uma eternidade. perdi a viagem. o que mata a paca é o silêncio, não adianta outra coisa. o melhor é nem respirar. vem... senta aqui do meu lado atrás deste toco.
— Mas pai...
— Cala a boca! não acabei de dizer que elas ouvem até o fermento do intestino. uma outra vez não agüentei e soltei um ventinho de nada, daqueles que assoviam fino, ah! foi peidar e escutar o tropelzinho delas nas folhas soltas. cada uma correndo pra deitar na cama que elas tem na caverninha delas. olha, Dindinho, não pode nem a pele raspar no pano da calça, isso pra elas é o mesmo que um mugido de boi pra gente. amanhã, dá uma olhada no gato, vê como ele anda, ocê ouve ele andar?
— Não.
— Então?!
— Mas teve uma vez...
— Poxa, Dindinho! quem cala vence! sossega! acabei de dizer que nós temos que fazer igual o gato; andar macio; distribuindo o peso do corpo na prancha dos pés pra não acordar nem coruja. ocê sabia?
— O quê?
— Que um bicho presta muita atenção no outro. eles todos sabem quem é bom em tal coisa, entende?
— Não.
— Como não?
— Não.
— É assim... os outros bichos sabem que a paca escuta mais do que todo o mundo. então, os bichos surdos ficam de olho nela, se elas correm, eles correm também, entendeu, né!? e as pacas sabem também que as corujas ouvem tanto quanto elas e que ficam nos galhos, desse jeito enxergam melhor, mas ninguém ouve uma coruja voar, ninguém! elas voam sem som. então, as pacas ficam de olho na Lua, passou um vulto de coruja, elas correm feito busca-pé. e sempre serpeando a beira d’água, porque se o caçador, que é a gente, se o caçador foi lá antes e tapou a entrada do covilzinho delas, elas tchumbam no rio! porque paca nada, Dindinho! olha... paca nada mais que peixe. uma paca pra nadar uma braçada de rio é mole, mole... nem sobe pra fungar. e quem é que vê a riscada dentro d’água?, ninguém!
— xíííí! olha quem chegou, pai.
— Ai, ai, ai, ai... agora é que fedeu. falei pra sua vó segurar o Pitoco. agarra ele Dindinho e aperta a boca dele. se ele latir a gente perde a caçada.
— Mas ele não pára...
— Quieto Pitoco, quieto capeta!
— Pai, será que o Capeta seguiu o Pitoco?
— Larga de chamuscada, moleque. e agora lá são horas pra ocê lembrar de Capeta? aqui, nesta escuridão sem fim. nessa mataria brava e longe de tudo.
— Eu tou com medo, pai.
— Eu não creio que ‘ocê vai chorar?...
— Vou...
— Ai, ai, ai, ai...
— É que a vovó falou...
— A sua vó é louca, moleque, já falei agorica de pouco! e ocê tem que saber que se o pai acender a lamparina, aí é que a gente se afunda. que bicho que não vai vê luz numa negrura dessa?!
— Mas pai...
— Dindinho... ocê nem parece filho meu! seu pai tem tutano, rapazinho! vê se se encolhe e vamos esperar que uma toupeirinha passe no carreador.
— É que o Pitoco...
— Segura esse cão desgranhento ou ele vai me fazer voltar de mãos abanando de novo!
— Pai, olha! uma assombração!
— Santo Ofertório!
— Não, pai! é assombração!
— A pica-fogo vai mostrar quem é vivo e quem é morto, fogo!
— Não morreu!
— Eu vi! vai outra chumbada, fogo!
— Não morreu!
— Eu vi! Vai! pega, Pitoco! corre, Dindinho!
— Socorro, vó!
— Sua vó é louca, moleque! corre, Pitoco!
— Vó, vó, vó, vó!
— Santíssima Trindade, o que é que foi?
— Vó... o... cai... o... cai...
— Calma! Dindinho... o que foi?
— O caipora, vó... veio atrás da gente!
— E cadê seu pai, Dindinho?
— Ficou pra trás, mas o Pitoco ‘tá com ele, vó!
— E o Pitoco lá sabe alguma coisa? o burraldo não sabe nem onde fica o próprio rabo! cadê seu pai, Dindinho?
— Tou aqui, mãe.
— Ai... ainda bem! o que é que houve lá no mato?
— Nada! O menino imaginou umas coisas... é muito criança.
— Mas pai... ocê viu também! ocê até atirou na sombra!
— Silêncio!, moleque. Já não falei: o silêncio é armamento! parece que não aprende!
— Ei... oi, Fio... oi, Dindinho... escutem quem vai lá... é o Pitoco correndo e latindo feito louco atrás das pacas. não é que ele tem inclinação pra caçador...
— Ai, ai, ai, ai, ai... minha mãe.

NO CASEBRE DA BENZEDEIRA

— Sarve comadre, como vai vancê?
— No consolo da Virgem, e a senhora dona Mafarda?
— Tou com esse menino aqui que não cresce e nem decresce. É uma lamúria na barra da minha saia, comadre; um gemerão infindado; uma zangaria sem fim, enguiça com tudo que vê. Cumprimenta a dona Sufia, augustinho!
— Tarde...
— B’as tarde anjinho, que é que vancezinho tem? Precisa dizer não!, vovó Sufia sabe.
— Ele anda quizilado, dona Sufia...
— Eu sei.
— Tá esfarelando os olhos, não firma o olhar...
— Eu sei.
— Acho que as bichas de verme entraram pelo sangue dele e tão comendo tudo que ele come e...
— Eu sei.
— ... deixando o coitadinho amarelado, cor de barriga de cobra.
— Eu sei.
— Não segura nada na boca, tomba fácil pela casa, dona Sufia.
— Eu sei.
— O que que nós faz com ele?, dona Sufia.
— Nós tem que fazer ele rir, dona comadre.
— Fazer ele rir? mas que blefagem...
— Diga assim não senhora dona comadre, esse menino sofre de infelicidade, tá dito!
— Mas não falta nada, comadre Sufia, tem arroz na panela, tem água do pote, tem cobertura por riba da cabeça, que que é que ele quer mais?, meu santo Agostinho?!
— Havemos de perguntar... fala menino... fala pra vovó Sufia o que que vancezinho quer...
— Nada é que eu não quero não, dona Sufia.
— Alguma vancê quer... pode falar... vovó faz o que ocezinho quer.
— não sei não, vó Sufia, quem sabe um dia qualquer...
— Um dia qualquer?, o quê?, fio.
— é que eu queria ser já homem feito!, é isso!
— Largue mão de zoeira, moleque! Isso é coisa do Cão-Zodíaco, dona Mafarda!
— Pois não é?!, confirmo que é!
— Esse moleque tá enluado! Vancê quer é pular por riba da infância?, senhorzinho baronês! passar pulando feito um saci pela pinguela que separa a vida boa da desgraceira ruim da vida de gente grande? êta!, menino aroeira!
— O que se pode fazer?, comadre.
— O remédio desse menino é dois... um tá na sua mão, comadre, e o outro é esse xarope de ruibarbo aqui.
— mãe... eu num tomo não!, é ruim!
— Que não toma não... toma sim!
— Mas diga, anjinho... diz aqui pra vovó, por que vancê quer ser homem assim sem mais nem menos?
— ...ããã... por nada não dona Sufia.
— ‘Tá com pressa de namorar?, tá?
— num é isso não! eu só queria poder andar longe.
— Andar longe?... então, toma, comadre, leve estas folhas secas aqui pra fazer chá que faz relaxar o corpo e dormir. Ele vai precisar pra quando ele voltar de ‘longe’.
— Vai precisar?, comadre.
— Vai. é pra insônia.
— Ué... então, ele vai ter insônia?
— Vai. insônia é uma falência que a gente busca longe e traz pra casa, eu sei.
— Tá bom, então... mas quer dizer que por enquanto é o ruibarbo?
— É.
— E a mão, comadre, por que que a minha mão é outro remédio?
— Ora... dê uns safanões nele quando ele dizer que quer ir pra ‘longe’.
— É pra bater?
— Não... bater, não. mas dê uns tapões na testa dele pra ele não esquecer..
— Esquecer o quê?, comadre, pelo amor do santo.
— O caminho de volta pra casa!, oras. Vão com Deus, ocês.

O FUTURO SOGRO DO POETA

— Fortemente?!
— B’as tarde, seu Tonhel.
— Fortemente, já falei!
— êêêêê, vem vindo donde?
— Do sítio, oras... de onde vancê queria que eu viesse?
— E a senhora sua esposa e os...
— Tudo fortemente! lá em casa é sempre assim, saiba o senhor! fortemente!...
— Tá certo... vai tomar uma caiana ou tá de molho?
— E por que eu viria aqui, se não fosse para depurar um pouco de tristeza?
— êêêêê, seu Tonhel, tá de ovo virado? aconteceu alguma?
— E por que haveria de acontecer?
— E eu lá que sei... já vi que não quer prosa mesmo...
— Não é isso não seu Casimiro. é que ando um pouco mais de meio aborrecido com um tal moçoilo, saiba vossa mercê.
— Por conta de quê?
— Ora, ora... por conta... por conta de umas amolações que esse mocinho magricela, metido a escritor, vagabundo, fica arrodeando a porta de casa com um falatório sem fim sobre poesia e outras matérias insanas. mas o que ele não faz mesmo é largar o garrafão de cana. todo dia a mesma ladainha: o homem bêbedo, bêbedo, no pedrisco do quintal.
— Ponha o homem pra correr seu Tonhel.
— Ora pois!... o homem anda tão entorpecido de cachaça que nem dá ouvidos. toma pancada e não sente... fica lá igual a um amontoado de carne debaixo do flamboyant. traz um pé com sapato e o outro sem nada, roupa amarrotada...
— E por que essa cisma justo com a casa do senhor?
— Por causa da minha filha, se não é... pela minha pessoa é que não seria!
— É... aí é ruim... temos que tomar partido sobre o melhor futuro dos filhos.
— E se não temos? com certeza, temos!
— O senhor não tá falando de um rapazola franzino que fica recitando versos em voz alta, não... né?... tá?
— É... tou... um barbichinha que mais parece um molambo de gente mas que tem pulmões sobrando para cantar versos que ele faz e outros que recita entusiasmado feito seriema macho.
— ah! já sei... o senhor fala é do Fagundes... sei quem é...
— ‘Sei quem é’... que me importa seu Casimiro... o que eu preciso é dar o sumiço naquela tralha!
— Mas o homem não é ruim seu Tonhel... é até filho importante...
— Minha filha cumpre sina de criminoso, trancafiada no quarto, seu Casimiro. a moça não pode sair sem ser alvejada pelo falatório do imprestável.
— Não é falatório seu Tonhel. sabe o doutor Ponciano, dono da fazenda Moitão?... certo dia esteve aqui, veio pegar um punhado de sal, quando o Fagundes bebia e recitava poemas naquela mesa ali. Pois o homem... lá o doutor, inventava precisão de ficar, só para continuar ouvindo. ficava olhando os embutidos, os queijos, as bebidas... tudo para ganhar tempo de ouvir o Fagundes. Depois, antes de sair, falou que salvara o dia porque ouviu versos dignos de não sei quem lá das inglaterras.
— O que me importa versos???, seu Casimiro... eu quero é braços!, homem... preciso de genro batuta!
— Mas quem escreve versos pode trabalhar também.
— Mas qual?... seu Casimiro...verso e calo é coisa que não combina, não dá rima. dedo grosso que segura enxada querer escorregar na pena é até pecado.
— Será?...
— E se o homem for poeta mesmo, aí é que eu não quero. é gente com destino triste. são vingativos... vingam-se da vida se esta não lhes sai ao gosto. e sabe quem paga o pato? os parentes, os amigos...
— É... ainda bem que na minha família não tem nenhum.
— E na minha não quero que tenha! a gente que trabalha, seu Casimiro, olha para o chão, para a terra, e a terra vive trocando de dono, um dia é de um, outro dia é de um filho ou de um novo comprador. agora, essas pessoas, tal qual esse Fagundes, que o senhor fala, olha é para o céu. e o céu, seu Casimiro, o céu pertence a um só e de lá veio o único livro que pode interessar. a gente vive uma vida para tentar entender um livro só, mais pra quê?
— É... o que se pode fazer?...
— O senhor trabalha aqui no armazém, não trabalha?
— Sim, e daí?
— O senhor é feliz aqui?
— É claro que sou!
— E o senhor faz versos?
— Não. não faço.
— Ninguém tira poema bonito de alegrias, ô, seu Casimiro...
— Tira sim! tem poeta que tira!
— Pois recite um, homem de Deus!
— Não... assim de cor, eu não sei.
— E algum poema triste o senhor sabe?
— É... o senhor tem razão... mesmo eu não sabendo um poema triste inteiro mas partes de um ou outro eu sei. é verdade.
— É o mesmo que tirar leite de pedra, não sai nada. a alegria tem que virar tristeza e saudade... ah!... tristeza... saudade... melancolia... isso são motes seu Casimiro!... isso são motes!
— O senhor quer que eu reúna uns homens para dar uma surra de varela no Fagundes?
— Não... deixa seu Casimiro. o estrago maior já foi feito. agora é confiar que o destino não seja o esperado.
— Como assim, ‘o estrago maior já foi feito’, ele buliu com a moça tua filha?
— Não e sim, seu Casimiro... ele não relou um dedo na moça mas ela já ouviu os versos que ele fez pra ela... e quer saber?...
— Diga seu Tonhel? mas... calma, não precisa chorar.
— São lindos... lindos... fortemente.
— Pode ir sossegado seu Tonhel, eu penduro a pinga.

A COMADRE INFERNAL ou a Comadre Existencialista

— De que vale a brabeza do homem?, comadre.
— É falta de recurso com as idéias, don’Ana. Ele machucou muito a senhora ontem?
— Dói na hora, só. Depois é tanto ódio que nem num se sente nada, não.
— Ouvi o tropel que vancês fizeram.
— Ai... comadre... a senhora me perdoe o escândalo mas é que eu queria muito endireitar esse homem... mas acho que é só por Deus mesmo. ele acha que o mundo é uma festa.
— É... o Gildo quase que foi lá ontem... salvar a senhora. Mas eu falei que não fosse porque a gente nunca sabe se está fazendo bem ou mal em se meter na vida alheia.
— Faz bem, comadre, faz bem...
— Olha... sinceramente não sei...
— Fica chato pelas crianças, não é? Ai... comadre... eu sinto tanta vergonha quando encontro as crianças daqui... ói... só de pensar eu começo a chorar... elas não escondem o desprezo que sentem, não... tá na cara delas que não gostam dessa baixaria toda que o Zezé anda aprontando.
— Deixe o homem, don’Ana. homem é tudo assim... pensa que o Gildo não faz as dele, faz sim! mas havemos de fazer o quê? só se for pra sair na pancada como a senhora faz...
— Pois é isso mesmo!, comadre. o jeito último tá sendo esse... tamos embolados pela casa feito dois cachorros de briga mas esse homem há de compreender que não sou uma qualquer. Ele não me achou no lixo, comadre. eu tava lá sossegada na casa do meu pai. tinha lá minhas desavenças com o velho e algumas outras com minha mãe mas, no mais, tava tudo bem. não carecia de abestalhado nenhum no rabo da minha saia.
— Mas qual, don’Ana. daqui a pouco ele pega mais idade e sossega, espera pra ver.
— Não, comadre. vou levar essa rinha nem que seja até no inferno! mas esse cachorro vai ter que aprender o quanto eu tenho valor. a comadre pensa que é poucos homens que derramam os olhos pra mim? é muitos!
— Mas é isso que irrita o homem!, don’Ana, a senhora faz ciúmes!
— Eu quero ver esse homem rastejando, comadre...
— Num rasteja!, ele bate em vancê, mulher!
— Que bata! mas que vai rastejar na lama imunda onde a porcada rolou, vai!
— Mas por que essa raiva toda?
— É pra coroar meu sacrifício, comadre. de que adianta o paraíso?... o bom do paraíso é saber que o outro tá no inferno. e a dor de quem tá no inferno é justamente saber que o outro tá no paraíso, o óleo quente que tem lá nos quinto é de menos, é coisa boba perto de saber que aquele alguém com quem vancê encrencou tá vivendo no bem-bom.
— Que é isso?, mulher. tá inventando castigo novo?, agora o céu existe é pra castigar mais ainda quem tá penando no piche?...
— É tudo inferno!, comadre. Já pensou se uma boa mãe tem um filho ruim? Ela no Éden e ele no caldeirão?! como fica essa mãe?... se deixam, garanto que ela vai acudir o filho e se não deixam ela vai preferir morrer no paraíso do que viver sabendo que o filho sofre.
— Ói... dona, preciso entrar... o feijão tá no fogo, preciso ferver água, matar um frango e tirar um bolo do forno.
— Vai... comadre, vai. eu vou buscar meu marido.
— Ué... buscar?... onde?
— Tá lá na beira do rio Formoso... perto da lagoa Bonita... acampado embaixo do jatobazeiro. e eu aqui nesse inferno, sozinha, comadre. até parece punição viver com alguém assim.
— Mas... ele tá no rio, don’Ana? mas então sossega, mulher... queria eu tá lá pescando...
— Eu também queria...
— Ué.... então não entendi mais nada... olha... don’Ana. Don’Ana! espera! se a senhora vai lá, leve um pedaço de bolo pr’aquele traste... tá quentinho!

POEMA CABOCLO

JOÃO PACÍFICO

No Banquinho

Ontem, eu da roça regressei,
No banquinho me sentei
E fiquei pra descansar
Fiz um cigarro de palha
E comecei a pensar na vida
Pra depois ir me deitar
Quando entre os galhos lá da mata
o lençol bordado em prata
Pela roça a se estender
E com o cigarro feito
E a viola junto ao peito
Me esqueci de adormecer
Fiquei olhando a roça iluminada
A lagoa prateada
E a viola a me entreter
A noite foi uma tranqüilidade
Nem tristeza nem saudade
Vieram me aborrecer

CORNÉLIO PIRES

Ideal do Caboclo

Ai, seu moço, eu só quiria
p'ra minha felicidade,
um bão fandango por dia
e uma pala de qualidade.

Pórva, espingarda e cutia,
um facão fala-verdade
e ûa viola de harmunia
p'ra chorá minha sódade.

Um rancho na bêra d'água,
vára-de-anzó, pôca magua,
pinga bôa e bão café...

Fumo forte de sobejo...
P'ra compretá meu desejo,
cavallo bão - e muié...

JUNQUEIRA MESTRE

O Par

Agora, somos um par de asas dum mesmo corpo
Somos grama e gafanhoto
Farol e escuridão
Somos padre e batina
Viga que conjumina

Somos botina e sujeira
Luz e areia, sanhaço e mamão
Mobília e sala, tombo e vala
Corte e faca, sorriso e dentição

Boca e anzol, ração e paiol
Flanela e pó
O vento e o frio, o canário e o pio
A corda e o nó
Fruta e semente, o elo e a corrente
A água e a mó
O espinho e a rosa
O cabo e o machado
Casal casado
Unidos e sós

JUNQUEIRA MESTRE

Desalmado

A enxada bate no chão
no compasso do meu coração
Que é tão fraco dentro de mim
que não consigo vencer o capim
O capinzal chegou no meu quintal,
forçou a porta e adentrou a casa
E as gramíneas crescem no banheiro
Uma touceira brotou no meu travesseiro
O telhado ‘tá florido de cipó
Até barata eu tenho é uma só
‘Tou bebendo água de bromélia
‘Tou comendo do pão da miséria
‘Tou assim tão fraco e ruim
Porque minh’alma não mora mais em mim
Foi se embora pra viver noutra pessoa
Tal qual a Lua quando brilha na lagoa
Não agüentou a dolorida dor
e ainda segue quem a gente amou
Eu fiquei só um corpo desalmado
'Tou carecendo de uma alma do meu lado.

CORNÉLIO PIRES

O Beijo

Um dia eu vi meu bem, junto do altar,
chegar-se ao Cristo nu crucificado
e aos seus pés frios beijos dar...
Em isso vendo, eu fui muito apressado
e sobre os pés de Deus, ali, curvado,
com a boca colada no lugar
Em que meu bem havia então beijado,
os pés do Cristo nu pus-me a beijar,
cheio de afeto e cheio de respeito.
Depois eu me retirei satisfeito
por me ter parecido aquele ensejo...
Pensaram que eu beijei os pés do Cristo
as pessoas que ali me tinham visto...
Mas não beijei os pés... beijei o beijo!

RONALD DE CARVALHO

O Poeta a Rir

Taça d'água parece o lago ameno;
Têm os bambus a forma de cabanas,
Que as árvores em flor, mais altas, cobrem
Com verdejantes tetos.

As pontiagudas rochas entre flores,
Dos pagodes o grave aspecto ostentam...
Faz-me rir ver-te assim, ó natureza,
Cópia servil dos homens.

MACHADO DE ASSIS

Círculo Vicioso

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
- "Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela! "
Mas a estrela, fitando a Lua, com ciúme:

- "Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela..."
Mas a Lua, fitando o Sol, com azedume:

- "Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume! "
Mas o Sol, inclinando a rútila capela:

- "Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"

DECLAMAÇÕES

FAZENDA DA PASSARADA

Certa vez, eu segui por uma estrada
Dessas que vão mais além
Não lembro pra onde eu ia
Mas, o mato que me seguia,
a terra toda comia
e me engolia também
Encontrei uma porteira
com uma placa pendurada,
com letras malarrumadas,
li uma ordem certeira:
NÃO ENTRE
FAZENDA DA PASSARADA
De fato, depois que entrei,
porque eu fazia a minha lei,
ouvi um ribombo de asas
Me agachei e fiquei quieto
e percebi pelo assovio
que os ramos escondiam
toda ave do Brasil
De todo tamanho tinha
Da grandona e da pequena
Nanica igual curruíra
Pernalta igual seriema
Daquelas que trazem cor
pra eu dizer que cor era
Só explicando pra um pintor
capaz de inventar aquarelas
Resolvi seguir adiante
cismando um carreador
pra mor de ver se encontrava
ao menos um morador
Andei quase uma légua
até que no pé da serra
deparei-me com um casebre
todo cercado de sebe
A sebe era tão alta
e tão cheia de espinhos
que pra chegar no quintal
ou furava-se o chão
ou nas asas de um pardal
Tentei encontrar a entrada
pra anunciar minha visita
Mas ali nada entrava
Dali só tinha saída
Então, resolvi gritar
Gritei dizendo meu nome:
“ô de casa, aqui sou eu!
Só queria um copo d’água
Não ‘tou pedindo esmola
Quem sabe pinga e café
e um dedinho de prosa”
Mas qual. Ninguém me respondeu
Pois finquei os pés no chão
e disse “daqui não saio”
O Sol se escondeu dezenas
e eu fiquei ali plantado
Um belo dia amanheceu
eu ainda estava rijo
Os passarinho me viam
mas não sentiam mais perigo
Eu ‘tava duro igual a um tronco
e a cara cheia de musgo
Por dentro eu fiquei oco,
por fora eu fiquei mudo
De repente um canarinho
trouxe palha e capim,
colocou em meus cabelos
e fez um ninho em mim
Achei bonito aquilo tudo
e jamais eu poderia
derrubar o seu ovinho
e matar o filhotinho
Depois que o filhote voou
eu voltei pra minha casa
Não consegui descobrir
quem é que ali morava
Aprendi a conviver com o dilema
Mas foi bastante difícil
eu me desfazer das penas.

A CONQUISTA

Sim. Eu sei que não sei nada
Consigo perceber que não alcanço
as idéias de que vancê fala
Sei que me falta a tal cultura, a tal da informação
pra dar uma direção mais alta nisso que chamam vida
Meu recurso com as palavras é minguado
Do advogado, eu sou o contrário
Então... falo pouco
porque o papel que represento nesse teatro,
nesse palco da vida
é ser o que sou de verdade: um simples Homem caipira
O cenário que me acomoda,
que é a roça e uma palhoça,
da cabeça exige pouca destreza
porque é só a gente seguir o ciclo da natureza
Fincar uma semente no chão...
que ciência que isso pede?,
pede alguma, sei que pede...
mas é pouca, pede mais observação
Basta olhar como a natureza gosta
que as flores, as frutas, as ervas melhor brotam
e fazer igual
É!, é simples assim...
com os animais também! E também com os passarinhos
Viver a vida que levo
é o mesmo que o corpo fosse uma canoa
e a vida um rio manso e caudaloso
É.. eu não levo a vida... sou levado pouco a pouco
Mas meu espírito é feliz e vive a flor da pele
Sinto que a Terra é viva:
que tudo ela come, que tudo ela bebe
Sinto que sou um bicho
criado de modo esquisito: um bicho que Deus obedece!
Não!... não sou atrevido
Porque quando a gente tem uma porção de gado,
a gente faz tudo que ele quer
pra melhor ele nos manter
Acho que Deus também tudo tenta nos dar
pra Ele sobreviver
Eu... por mim... exijo pouco ingrediente
Se não sou inteiro feliz, ao menos vivo contente
Sou do tipo boi erado
Do mundo vivo apartado
Vivo longe do rebanho
nas franjas da ribanceira,
no vale da cachoeira
Lá no fundo da serra
escondido entre as folhagens,
é lá que prefiro morar
É que sofro um desatino
no meu coração pungente:
não gosto de ser domado!
Nem tampouco ser mais um numa invernada de gado!
Mesmo que eu seja lembrado
como pouco inteligente
podem tirar o “in" da palavra inteligente, faço pouco uso mesmo
O "inte" podem tirar também, não faz mal
O "inteli” pouca falta fazerá
Mas nunca que vão me tirar
o prazer de ser e sou: GENTE.

MIRAGEM

Sai da frente zé-ninguém!
Vancê ‘tá me atrapalhando... não vê?
‘Tou olhando a paisagem...
essa... essa mesma... que vancê chama de miragem
É porque onde eu vejo árvore vancê vê lenha
Onde eu vejo rio vancê vê irrigação
Onde eu vejo pássaros vancê vê praga
Onde eu vejo animais vancê vê imprecação
Onde eu vejo selva vancê vê cana
Onde eu vejo gente vancê vê trator
Onde eu me vejo satisfeito
vancê vê tudo transformado em dinheiro
E pra quê?
Pra comprar a felicidade?
Onde?
Esqueça zé-ninguém...
Vem geração, vai geração
e vancê não percebe que felicidade
é a maior das ‘ilusão’.
É uma desculpa bestial
que os donos do capital
inventaram pra vancê
comprar tudo que se inventa
pra mor de satisfazer
todas as suas carências
Mas qual?... Satisfez?
Aposto que só aumentou
Quanto mais é a tristeza
quanto mais vancê comprou
Eu sabia que vancê concordaria
mas sei também
que não larga de um vintém
pra mor de nos ajudar
Não a mudar a paisagem
mas a mudar o olhar

MEU CACHORRO DE CAÇA

Meu cachorro de caça sumiu
Mas, não sumiu assim, não, de desaparecer
sem deixar pegadas no chão
Ele sumiu foi de propósito
Levantou bem cedo, da minha cama escutei quando
bocejou e chacoalhou o corpo descolando o couro do esqueleto
Quando abri a porta ele não parecia azedo. Estava de nariz pro ar farejando coisas que também tentei farejar, mas meu nariz, agora, só serve mesmo é pra respirar
Nem esperou o naco de pão que lhe dava toda manhã e pronto de prontidão caminhou até o portão
Afinal, ele sabia abrir tal e qual fosse gente
Toda vez ele puxava a folha com a pata e com a cabeça lançava um forte empurrão, mas por ser comprido, antes que a traseira todo ele passasse, o portão queria bater e ele encolhia o rabo
Olhou mais uma vez pra mim implorando que eu o seguisse, mas eu não sei que burrice me fazia e me fez ficar e não garrar a fincar a cara pelo sertão
E de bule e café na mão eu não saí do lugar, sem acreditar que o meu parceiro e amigo, dito um animal diminuído, demonstrava mais juízo do que em toda vida eu havia tido.
Quando chegou na esquina, eu sei! Eu não vi, mas eu sei, ele parou. Parou porque deu um latido, aliás, eu sempre dizia um “piado”
É! Era certeza que ele havia encontrado um rastro de carreira comprida
Se fosse corridinha curta, de tatu, de teiú ou de preá, ele daria só um granido
Ou se fosse bicho de peso, tal qual uma capivara dessas bruta
ah! Daí era latido firme, grave. E eu dizia “ói! ele urra!”
Mas se ele “piou” era corrida fina de não durar somente um dia
Ele já chegou há correr três! Três dias e três noites sem demonstrar desespero,
de nariz grudado ao cheiro de um ‘gaiado’ de um mateiro que até o branco do zóio era de vinho vermelho
Eu dormindo repicado, acordava com o latido que ele dava de quando em quando demonstrando lindamente que não havia desistido
E não é que a vida é assim...
Igualmente um cristão é chamado pelo sino, o latido desse perro sempre foi o meu destino
Mas, agora... Agora ele ia embora
cansado de tantas horas deitado sem levantar
Esperando eu encontrar a trilha que prometeram
de que se pra cidade eu viesse
enchia os bolsos de dinheiro
Entrou e saiu ano e tudo foi piorando
E meu cachorro caçador vendo em mim tanta dor
chuviscando do meu zóio
Saiu de casa “piando” e sozinho voltou pra serra
E toda noite eu escuto lá das furnas da terra
seu latido me dizendo esquece essa tal cidade
em nome da nossa amizade
Cê não vê que é uma armadilha
que mata enquanto cria
a ilusão de felicidade

Contos

Café Quente

Entre a água quente e o pó de café existe o vento, o vapor capturado leva o cheiro de alma-boa e o espalha pela terra. A maldade não vaza o coador, fica junto com a borra, barrada pelo filtro. Com o aroma, o mundo derredor é abrandado da naturaleza crua. A boca pede calma ao corpo por sentir prazer, um instante a mais de saliva como se fosse um brinde raro. E as narinas também avivam os humores de uma inesquecível saudade que traz junto consigo os ares de todos os tempos. Mais os olhos que, por cumplicidade, se enchem de licores lacrimais. Destiladas pelo sentimento, as lágrimas embriagam a visão e transforma ramagens em espectros de tudo que gostaríamos de ver, movimento de folhas em órgãos corporais gigantescos. Basta uma imaginação viva.
Cheiro de café é bom mas cheiro de café na folhagem envolvente da mata é outro prazer: tem espíritos verdes, sorrisos estóricos, reminiscências de lendas e de outras vidas. Tem a força das raízes suportando os pés, além da fusão de húmus com o verdadeiro perfume da nossa pele: nosso cheiro agreste, o próprio suor em si.
Percebe-se no balanço da galharia que há uma mareação do vento. As galhadas são como algas marinhas balouçando ao sabor da maré de um oceano de ar. Estamos nas profundezas roucas, pisando o fundo, tocando o lodo desse mar de ar que nos encobre. Ria por reagir comumente ao me deparar com o verde: refletia. O verde é o altar dos assombrados, a referência eterna de paraíso, a poltrona reconfortante da espinha sentimental.
Fizemos a clareira, tiramos a vegetação de debaixo dos pés, varremos a vida que acontecia ali para podermos ser e nos sentir humanos. Algumas imbaúbas escaparam por um triz. Em frente ao fogão, uma mina d’água refletia o fogo do sol. Água e fogo beijavam-se o dia todo, mas de manhã e a tarde seus beijos eram mais sinceros. O sol despontou enfadado naquele dia, mas com nítida sinceridade. O dia foi abafado, próprio para mosquitos e, estes, próprios para pererecas. Próprio para inhames e para a expiação da malvadeza.
Formigas formaram fila indiana para transportar farelos de arroz e fiapos de carne, restos que voaram de nossas bocas na noite anterior, depois que montamos o acampamento. Um batalhão dessas soldadescas alegrou-se com a nossa chegada, roçavam as antenas e se confraternizavam. Enquanto trocavam opiniões umas com as outras e ensinavam o caminho das pedras para as recém-chegadas. Quanto ao nosso grupo, seria o primeiro dia de uma tarefa árdua. Atento a tudo, pulei o carreiro das formigas.
Água, fogo, vento e café despertaram o Aldo e seu compadre, o Pirreco. Na realidade, Aldo e Pirreco não eram compadres coisa nenhuma, apenas sintetizavam um ritual de amizade que predominava na região do sertão, era um sinal alegórico de que a verdadeira amizade abraçara os dois. Pirreco era nativo da mata brava, homem sem civilização no coração. Era um caboclo teimoso de si mesmo. Dormiu na barraca por pura curiosidade. Cria da profundeza uterina da floresta, lá onde as folhas se arrependem de terem caído sem ninguém ter visto, onde os galhos confiam nos troncos e raízes desviam dos diamantes como se estes fossem mera pedraria, Pirreco hospedava-se confortavelmente no cafundó.
Quando enfim se levantaram, um burburinho de risos recomeçou. Pirreco tem um tique de levantar e abaixar os dois braços quando fala:
— Estão aqui. Sei disso.
Nossa tarefa era capturar Guainumbis-pretos e levá-los ao museu de vida natural. Desapareciam muito rapidamente. Não cabiam mais na civilidade porque não cabe beleza natural em mundos arquitetados. Não cabem gotas de sereno, mel de flor, som de pios nos lugares que ostentam lâminas de vidro. O concreto exige designes que a natureza desconsidera. Portanto, estávamos tomando providências para preservá-los embalsamados. Capturaríamos alguns para o banco de genes também. E como forma de eternizá-los, faríamos algumas fotos para a confecção de um rótulo no cilindro que guardaria o dna do animal. A vida estava se tornando rara e somente os pesquisadores não sabiam o porquê. Não éramos pesquisadores, éramos braçais, e tínhamos nossa opinião alicerçada naquilo que nossos olhos enxergavam.
Instalados na linha de terra entre um rio e um lago, mais para perto do lago que do rio, vimos que os mosquitos adoraram nossa presença, vampiravam-nos o tempo todo. O lago é melhor do que o rio. O rio atrai incessantemente os olhos com a ininterrupta passagem da água, o lago descansa a mente, faz com que paremos também. Já o rio, com a permanente correnteza, lombeia destroços que chamam a atenção a todo o momento, reparamos nos camalotes que deslizam na flor d`água, troncos e seixos que não conseguem impedir a descida. O rio é como um noticiário permanente. O lago é um assunto que já se sabe, mas que se aprende um pouco mais a cada dia.
As jaçanãs passeiam avizinhadas das taboas e sem qualquer motivo aparente esvoaçam gritando alaridos e despertam a curiosidade de todo o reino animal. Depois, sem dizerem qual foi a novidade, silenciam. Talvez seja mania de exagero.
— Um cafezinho?
— Aceito.
— Quero um!
Farnel na mão, mergulhamos na mata em trilhas que só existiam nos olhos do Pirreco. Pulamos paus atingidos por raios ensandecidos, desviamos de árvores que deitaram no chão sem contar o motivo. Contornamos pedras que não se conformaram com as funduras rochosas e brotaram do chão como pétalas de terra. O tapete fofo de folhas podres que se entendia por toda a extensão da mata prejudicava nossa caçada. Em alguns lugares os passos se enroscavam no tapete. Pudera, tornava-se um colchão de folhas. Os musgos muniam-se de molas que exigiam equilíbrio ao caminhar. Aos inexperientes não há outra forma a não ser equilibrar-se como um João-bobo. Fizemos um grande esforço até a primeira parada. Recostamo-nos num pau-d`alho e sacamos mais uns goles de café preto.
— Cuidado com a boca, compadre.
Aldo fez esse comentário e riu para me contar que o Pirreco, no ano passado, quando foram capturar o uirapuru, não conhecia garrafa térmica e, quando foi tomar o café, o matuto se apossou de meio copo e derramou na goela. Imaginou que o tempo esfriasse tudo. Mas, a boca ficou sabendo que algumas coisas demoram mais para esfriar. Lhe explicaram sobre a garrafa, veio a exclamação do matuteiro:
— Puxa, essa coisa é melhor do que avião!
Pirreco jamais vira garrafa térmica, luz elétrica, rádio, televisão, chuveiro, entre outras facilidades tecnológicas que avançam sobre a mataria. Era um homem tranqüilo, assobiava fino e fumava talo de pé de machuchu ou cipó seco quando não conseguia fumo. Não possuía morada fixa nesse ermo encantado, mas avião já havia visto passar bem alto no céu fazendo um cordão de fumaça branca.
— Viu algum Guainumbi-preto, compadre? tive a liberdade de chamá-lo de compadre, também.
— De que jeito veria?
Tudo que passasse por mim seria visto. Apertava as pálpebras e acutilava qualquer movimento. Varria as árvores à caça do guainumbi. Qualquer movimento de sombra não passava desapercebido da febre de embalsamá-los. Caminhamos o dia todo e nada do beija-flor preto. Cansados, regressamos para as tendas. Nessa primeira noite, era minha a incumbência de preparar o jantar. Nu, dentro do lago, comecei a desconfiar da facilidade do nosso trabalho. A pequena infantaria de formigas indicava que nossa prosa diminuíra bastante, economizavam o exército porque o espólio era magro. Nos demos um último gole de café para adoçar a boca e o sono.
O amanhecer surgiu com o vapor do café, a brisa matutina oferendou o aroma para os animais de faro bom. No sopé da embaubeira, abelhas se agrupavam para garimpar açúcar no monturo de pó. Goles seguindo goles, tomamos a coada toda. O café reanimava a empreitada — que mataria! Teríamos que caminhar lonjuras se quiséssemos ouvir um bulício de asas, um estribilho de pio do beija-preto. Dia estafante, suado de esfregões de cipós, de agulhadas dos chupadores alados. Era o mesmo que procurar formiga em saleiro, rato em ninho de cascavel e solução para a poluição. Lanchamos e, carcomidos pelas dores, acenei para que dormíssemos poucos minutos.
Num repente vi um Guainumbi-preto parado no ar! Asas rápidas ressoando num timbre espiritual, crivava no vento uma aura celestial. Olhou para mim durante todo um segundo e disparou pelas sendas dos galhos como um dardo vivo, acordei? Pirreco vinha da mata correndo ligeiro e batendo os braços para cima e para baixo. Vinha na minha direção gritando engasgado, tossia um pio rouco:
— Vi um! Vi um! Veio de cá e foi para lá!
— Também vi, Pirreco, foi por aí!
Estava desprevenido, não esperava que aparecesse enquanto dormitávamos. Pensei ter visto algo quimérico, mas a confirmação de que houvera sido real me confundiu. Confirmação dada pelo Pirreco. Me vi exasperado nos olhos do mateiro, minha imagem parecia prata no negror daquela íris, mas depois que piscou, sumi. Pirreco sabia mais sobre a floresta do que demonstrava. Terminamos o dia com um pé atrás do outro e nada. Escureceu quando redescobrimos as nossas lonas. Aldo fez o jantar, curamos as feridas e nos consolamos:
— Com fé.
— Côa café.
— Co` a fé.
— Café?
— É.
Filtrado pelo café, não consegui mergulhar no sono. Pirreco cantava... não se cansava. Aldo roncou trovões de altura, fazia inveja aos esturros das onças-machas. Não entendi o que Pirreco cantava. A melodia soou popular, mas a voz e as palavras... nunca ouvira... uma certa embocadura metálica... entoava vogais e silvos, sem som de glotes e com um fôlego bastante prolongado. Igual a um truque de ventriloquia. Retumbava perfeitamente pelos ecos da selva inocente. Desmaterializou-se com seu canto por entre os treques dos gravetos secos. Tive uma sensação de selva faminta enquanto adormeci. Ouvi um breve lufar entre as folhas circundantes. Acordei quando a lua ainda sonhava o seu romance com o sol. A aurora impôs que uma avalanche de sombras se encolhesse. Da mata, vestindo as calças e com a camisa na mão, Pirreco cresceu enquanto caminhou para perto. Sempre balançando os braços. Fé cá, fé lá e acolá, outra tentativa. Afinal, para que servem os sonhos senão para mover a vida.
O cansaço começara a desferir golpes nos semblante, as armadilhas de visgo que espalhamos em pontos estratégicos capturavam pássaros de todas as espécies, menos o Guainumbi-preto, parecia que havia placas avisando: “Danger, visgo”, numa língua que só os beija-flores pretos entendiam. Então, a decisão de nos separarmos se fez necessária, desconsideramos o risco de nos perdermos no emaranhado verde de toda a confusão. E, para mim, a confusão foi grande, me perdi mesmo na selva. Procurei não entrar em desespero. Comecei a caminhar de forma racional, procuraria um fio d’água, esse fio se uniria com um outro de maior volume, e, esse outro, com outro ainda maior e assim chegaria ao rio, aí, margearia o rio até onde estávamos acampados.
Trilhei enquanto durou o dia para encontrar o primeiro fio de água, então, me encostei num tronco qualquer, abracei as raízes aparentes como se fossem braços de amigos, fechei os olhos e me esqueci da noite. A vergonha de estar perdido ironizou o destino: tive um sonho engraçado, sonhei que um saci me pegou pela mão e me mostrava a floresta, mas o engraçado era que para acompanhá-lo tinha que andar aos pulos também. Amanheci sem uma gota de café, a mecânica dos desesperados assumiu o controle dos passos. Algumas horas e o desespero germinava das sementes e dos frutos, movia árvores inteiras, trazia todos os insetos para mim. Junto ao curso do riacho caminhei mais um dia inteiro, mas não consegui encontrar o rio porque o riacho transformara-se num brejo, num enorme banhado, num pantanal de dificuldades. A estafa e a fome minavam as células vitais, um sono metafísico dominou-me e ajoelhei. Veio a certeza de desacordar da vida e adentrar a luz vazia. Não reconhecia mais a dor. O alívio da morte passeou pelo corpo e soprava todo o ar para fora dos pulmões, e era bom. A alma seguia o vapor que o corpo exalava, estava em ebulição. O sangue espalhava a febre das veias para todos os poros. Líquidos essenciais escorriam para a terra e penetravam o subsolo.
Estava pronto para ser tomado pela morte quando calafrios incitaram a carne a recuperar o instinto, levantei-me e cruzei mais alguns pequenos lagos. Descobri como eram idênticas as jaçanãs, transpus dunas de espinhos e labirintos de lama, águas turvadas pela putrefação, véus de aranhas me recobriram centenas de vezes. Daí, restou o tombo! Soltei a mão da resistência e fiz amor com a desistência. Um sapo frio encarou-me de sua altura, inflou-se e secretou peçonhas, mas coloquei-o debaixo da cabeça, como meu travesseiro, e dormi profundamente. Me aqueci abraçado a uma touceira de capim-navalha. Não percebi que houvera noite. Não senti os insetos depositarem ovos em mim. Nem alguns outros se refestelarem das minhas queridas hemácias. Não dei conta dos moluscos que se aqueceram do meu último sopro de vida.
Mas... Despertei com a música das asas de um beija-flor, serenata da vida. Quase dentro dos meus olhos, ali estava o guainumbi-preto, um anjo negro parado e zunindo maravilhosamente a sinfonia grave de suas asas. Uma força desconhecida me impeliu a levantar apesar de tremulo de delírio. Correndo pela mata acompanhava o beija-flor que voava ziguezagueando pelas trilhas dos animais! ‘Encontrei!’, gritava em pensamento, ‘encontrei!’ Enquanto corria, sacolejava a morte que espirrou junto com caracóis e sanguessugas. Minha corrida era muito inferior ao vôo da ave, então, no meio do desvario, quis voar. Batia os braços com a energia final e buscava outros suspiros para alçar vôo, até que saí da trilha e enterrei a cara no chão, caí! Disfarcei que tinha motivos e chorei. O guainumbi sumira, portanto, tranquei os olhos e me entreguei ao destino da morte. A paz mortal que corria atrás de mim, alcançou-me novamente. Ia me entregar, porém, o inusitado se repetiu, um cheiro adorável de café inscreveu um mapa em meu nariz. Ressuscitou o desejo de viver. Não consegui levantar-me totalmente, estava muito debilitado, então, joelhos e mãos se fizeram patas e, de quatro, igual a um cão perdigueiro, segui o aroma do café, com fé ferina. Rosnando, virava para o rumo em que percebia o cheiro mais forte, farejava a atmosfera e babava um cordão de saliva pelo queixo. Me fiz parente dos caninos e da cafeína, animal sem olhos, somente faro. A realidade maior advinha do vento, de tudo que tudo exala. O olfato criou panoramas e geografias. A fedentina das folhas podres denunciava os locais de concentração de vermes. Fariscava o musgo e a seiva dos troncos e, sem ver nada, adivinhava a trilha certa do café. De boca aberta, com a língua solta para o ar, o universo aromático acentuava-se, até que repentinamente vazei um espinheiro espesso e pulei assustado sobre as barracas.
Recuperei minha humanidade quando ergui meus olhos e vi dezenas de Guainumbis-pretos sobrevoando o canecão onde havíamos passado tantos cafés. Um após o outro, planavam em fila perfeita e molhavam o bico na doce bebida. E corporificando-se das sombras da mata, vinha Pirreco batendo os braços no ar para cima e para baixo, gritando ‘encontrei!’, ‘encontrei!’, e se misturou no vôo rasante dos Guainumbis-pretos que circundavam minha caneca.

DA JANELA DA PALHOÇA

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